A temporalidade da depressão
- Cristina Martins Tavelin
- 8 de jan. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 27 de jan. de 2024

Em 2009, a psicanalista Maria Rita Kehl publicou uma obra que viria a ganhar o Prêmio Jabuti no ano seguinte: O tempo e o cão – a atualidade das depressões¹. Esse livro, que se tornou uma referência contemporânea sobre o assunto, traz um título um tanto curioso; e a situação que o originou foi justamente o gatilho para sua escrita. Conta a psicanalista que estava dirigindo numa estrada certo dia e, acossada por alguns caminhões, acabou por bater em um cão que passava entre os carros. Ferido, o animal embrenhou-se rapidamente no meio do mato e sumiu da vista de Kehl.
O acidente não passou batido e levou a autora a refletir sobre o tempo, cuja velocidade nos dias atuais faz com o significado de certas situações perca seu valor. No sentido oposto a essa velocidade, situam-se as depressões, com uma temporalidade própria, lentificada; ou seja, o avesso daquilo que se espera no mundo contemporâneo, onde a exigência de ser pró-ativo, multitarefa, empreendedor de si mesmo, tem levado a tantos dilemas para a saúde mental.
Autores de várias áreas têm discutido sobre as consequências desse excesso, e um dos mais interessantes é Jonathan Crary, Em seu livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono², Crary mostra justamente como a organização econômica da atualidade tem buscado formas de ultrapassar o último limite humano para a produtividade: a necessidade de dormir. Visando a esse resultado, pesquisas questionáveis foram realizadas nas últimas décadas, a exemplo do estudo com uma espécie de pardal que permanece acordado por sete dias e a tentativa de colocar em órbita satélites-espelho que pudessem refletir a luz do sol por mais tempo.
Crary retoma a discussão de Marx sobre o quadro Arkwright’s Cotton Mills, que abre esse post, para tratar da mudança da temporalidade e do ciclo circadiano, sobrepujados por ritmos não naturais. Ao descrever a obra de Joseph Wright, considera inquietante a cena noturna na qual a luz da lua e os pontos de luz nas janelas dos moinhos de algodão coexistem. A composição de 1782, em suas palavras, anuncia uma relação abstrata entre tempo e trabalho.
As consequência da interrupção dos ritmos naturais são inúmeras, mas o sono parece resistir como uma última barreira para preservar o humano. Retomando a discussão proposta por Kehl sobre a depressão, a autora reflete sobre como esse tempo lentificado do depressivo coloca em xeque a velocidade do modo de vida atual, nos fazendo questionar sobre ele: uma espécie de resposta psíquica ao excesso.
Não que isso reduza o sofrimento da depressão, longe disso. Mas há de se refletir sobre a velocidade excessiva da vida contemporânea e os modos de adoecimento vinculados a ela. Kristeva³, por exemplo, aponta que o agravamento das doenças psicológicas tem correlação com uma sociedade pautada nas exigências da performance e do espetáculo.
Diante da magnitude do problema da depressão a nível mundial e da crescente demanda por medicalização, encontrar formas de compreender esse estado que o desloquem de uma descrição meramente positivista para dar visibilidade também aos aspectos sociais e culturais pode apontar novos caminhos de reflexão.
Referências:
Imagem: Arkwright’s Cotton Mills by Night, de Joseph Wright
1 KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009
2 CRARY, Jonathan. 24/7 - Capitalismo Tardio e os Fins do Sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014
3 KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro; Rocco, 2002
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