Uma vida fragmentada e cinematográfica
- Cristina Martins Tavelin
- 13 de jan. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 27 de jan. de 2024

Do que se trata o cinema? Essa pergunta um tanto simples – cuja resposta vai bem mais longe do que “uma narrativa sobre a realidade” – colocou muita gente pra pensar desde o início do século XX. Charney e Schwartz¹ destacam que a vida moderna já era “cinematográfica” antes do cinema e, inclusive, ajudou em seu nascimento. Foi a partir do movimento cada vez mais rápido nas cidades e dos avanços tecnológicos que um novo modo de vida foi tomando forma, resultando nas imagens em movimento da tela.
Na contramão do cinema dominante, alguns filmes têm a capacidade de reinventar o dispositivo cinematográfico explorando outras intensidades e relações com o espectador².
Pode-se colocar, entre eles, Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard. O filme de 2014 apresenta uma narrativa fragmentada que integra o uso disruptivo do 3D, além do esgarçamento e saturação de imagens. Os limites entre imaginação e realidade são colocados em jogo desde o início: “Todos aqueles que não têm imaginação refugiam-se na realidade” é uma das primeiras citações em meio a tantos outras, de Blanchot a Darwin. A trama? Um homem, uma mulher, o amor, um cão.
Desde a década de 1960, junto ao movimento da Nouvelle Vague, o cineasta tem sido um dos mais influentes tanto em termos de inovações na linguagem cinematográfica quanto nas inovações técnicas. Como aponta Dubois³, na obra de Godard, um certo uso linguagem é empregado em um trabalho de desconstrução. Tanto por fazer parte da indústria cultural quanto por recusá-la com sua subversão técnica, o diretor cria um espaço fértil para a discussão sobre o cinema e também sobre suas interlocuções com a subjetividade contemporânea.
É interessante notar como a linguagem apresentada na obra pode dialogar com a linguagem da depressão a partir do ponto de vista da psicanálise. O conteúdo imaginário do depressivo se mostra mais escasso, com um vazio de significações especialmente nos primeiros encontros com o analista⁴. Aos poucos, pode-se construir, a dois, uma temporalidade singular — que difere daquela do entretenimento.
Assim como o depressivo integra a sociedade do espetáculo mas, ao mesmo, aponta uma certa recusa, a obra de Godard coloca em questão o caráter “excessivo” de outros filmes: o excesso de ação, de movimento, de velocidade. Como no sistema capitalista a cultura passou a ser articulada diretamente ao consumo, perdeu seu caráter espontâneo para se tornar um protótipo dominante⁵, pasteurizado; daí a importância de que haja espaço para outras possibilidades.
Um filme como esse, na contramão da indústria cultural, pode abrir uma fresta para que outras formas de experiência apareçam. Afinal, mais do que uma representação da realidade, o dispositivo cinematográfico tem uma relação complexa com o que mostra ou deixa de mostrar. No entanto, também cabe ao espectador — que está longe de ser uma figura passiva — estar disposto a vivenciar formas de experiência que o tirem do lugar comum.
Referências:
Imagem: Cena de Adeus à LInguagem, de Jean-Luc Godard
1 CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004
2 PARENTE, A. Cinema de exposição: o dispositivo em contra/campo. Revista Poiésis, n. 12, p. 51-63, nov. 2008.
3 DUBOIS, P. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004
4 KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009
5 ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro : Zahar, 1985
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